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REFORMA. CONCLUSÃO.


SALTOS NO ESCURO NUNCA DERAM CERTO. POR QUE DARIAM AGORA?

Anoitecer suave, as luzes se acendendo, tremeluzindo do outro lado da baia, o mar, de superfície ainda visível, ligeiramente ondulado pela leve brisa que soprava, vinte e um, vinte e dois graus, talvez, uma benção para uma região afeita ao calor acima dos trinta graus a maior parte do ano, meses com temperatura acima dos trinta e cinco graus, subindo e brincando em torno dos quarenta, aqui e ali quarenta e dois graus centígrados, até mais. Um anoitecer perfeito, de sossego e paz. Paz?

Edivaldo vinha caminhando pelo calçadão, não tinha olhos para a paisagem, cabeça baixa e fervilhando.

— Edivaldo! Puxa cara, há quanto tempo! Dez anos?

— Caramba! Licínio? É mesmo, cara, não nos vemos desde que a gente acabou o ginásio.

— Tempo maravilhoso, não, Edivaldo?

— É!

— Só esse “é” insosso, Vadinho?

— Tô com a cuca um mingau, Lico.

— O que houve, Vadinho?

— Tô saindo da reunião convocada pelo pároco. Ele quer marcar o casamento de todos nós da paróquia. Você tá nessa!

— Eu não, Vadinho, minha paróquia é outra, estou a salvo de maluquices. Mas, casamento? Todo mundo tem noivo ou noiva?

— Não.

— Espera um pouco, Vadinho, que piração é essa?

— Eu perguntei isso ao pároco, ele me disse para não me preocupar. Eles escolherão as noivas.

— Eles quem?

— O pessoal da Congregação.

— Vadinho, essa gente malucou?

— Também perguntei, ele disse que é tudo gente boa. Amigo da gente, foi a expressão usada.

— Tá! Mas como será esse casamento?

— A gente entrega dinheiro para a “esposa”, ela guarda, faz sei lá o quê, paga-se a ela uma mesada, no final, se a gente chegar a se aposentar, sei lá quando, ela devolve o nosso dinheiro.

— Mas, Vadinho, e se no meio da tal gente boa vierem esquisitonas e sabidonas, que darão sumiço no dinheiro dos despreparados nesse negócio de capitalização, a grande maioria? Vão ficar nas mãos das “esposas”, um risco enorme.

— Ele disse que a gente pode se divorciar e casar com quem a gente quiser. Disse que é uma tal de portabilidade.

— Pô, Vadinho! Portabilidade é coisa de linha telefônica, de celular; mas com a sua grana? E como a “esposa” vai devolver o dinheiro? Vai ter juro, que tipo de juro, como será calculado?

— Fiz um monte de perguntas, ele disse “depois a gente vê isso”.

— Depois, Vadinho?

— É, Lico.

— Depois de já ter casado?

— É, Lico, depois.

— Vadinho, você pirou?

— Eu não, Lico, todo mundo tá de alegre nessa história. A gente não decidirá nada quanto ao nosso dinheiro, ganho com o nosso trabalho, às vezes um sacrifício danado, patrão “virou” senhor de engenho, qualquer coisa que se reclama ele aponta o dedo e diz “a porta da rua é a serventia da casa; se você não quiser assim, tem um montão de gente aí fora querendo”. Sobre nossa aposentadoria, então, a gente tá completamente no escuro.

— Olha, Vadinho, acompanhando de longe essa questão da Reforma, às vezes eu sinto calafrios.

— Por quê, Lico?

— Podem estar produzindo uma caixa de Pandora; que quando for aberta…

— E onde estariam as maldades?

— Em algo ainda por vir, que ninguém fora da Congregação sabe o que é; apenas sabe-se que virá se a Reforma for aprovada do jeito que está.

— Pô, cara, eu já estava cabreiro, agora estou ficando com medo. Debulha essa espiga.

— Essa coisa “ritchcoquiana” é um “franquenstein” que só começará a movimentar-se com o choque de uma lei complementar, cujo projeto sairá das mesmas cabeças que conceberam o mostrengo. Um enigma, ninguém toca no assunto e nos riscos que pode representar. Isso é mais importante do que tudo, mas ninguém parece preocupar-se. Minha pergunta é: Como se cogita votar uma tempestade dessa magnitude sem identificar precisamente os seus efeitos no próprio projeto original? O segurado tem de saber com segurança, financeiramente, como será sua aposentadoria. E não sabe, não há como saber. É da essência da matéria, sua substância, precisa ser cuidado agora. O Congresso votará sequer uma imagem, sequer um esboço do que é mais importante, mas no ‘nada absoluto’, sem energia que possa flutuar para dar à matéria, embora de modo incipiente, um “vigamento”, uma estrutura interna. Temos no projeto, quanto ao que lhe é fundamental, um vazio absoluto. Se e quando a votação acabar, você não terá nada além de profundas alterações em sua vida, em seu futuro respeitante aos frutos do seu trabalho. Para pior. E o nada que terá, o será sem qualquer energia para flutuar —um ponto de partida —, um nada que será nada mesmo. Depois, com a lei complementar, poderão ser introduzidas coisas que não correspondam às justas expectativas de toda uma vida de trabalho, de esforço, muitas vezes de sacrifício. E então será tarde para reclamar. E essas coisas, sem dúvida, poderão doer um bocado!

— Pô, Lico, ninguém tá vendo isso?

— Sei lá, Vadinho, sei lá! Como será a capitalização? Simples ou composta? Em que termos se constituirá o momento zero e como será distribuída a série de pagamentos? Os empresários devem hoje uma fábula de dinheiro pelo não pagamento de suas obrigações. E se continuar assim, e se eles entrarem na parada e continuarem não recolhendo os valores? A União está mais para lá do que para cá, quebrada, de certo modo; vai capitalizar apenas a contribuição do trabalhador? Para aposentar-se com quê, com uma miséria? Como nas eras zodiacais, estamos vivendo a era do trilhão. Vai economizar um trilhão, mas vai gastar também um trilhão para implantar a coisa, como se disse; muito bem, que economia é essa que para ser alcançada precisa de gastos no mesmo montante?

— Lico, estou com medo.

— Eu também estou, todos deveriam estar, pelas cruéis incertezas que essa Reforma, como se apresenta, poderá trazer ao país.

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