PORTAS ABERTAS, MÁSCARAS QUE CAEM*
FALEMOS SÉRIO
Caiu-nos a máscara, desnudado o mito de que somos — ou éramos — um povo pacífico, cordato. A violência multifacetada, de métodos diversos, é feroz em nosso país. Violência de todos os matizes, oficial e privada, individual, de grupos e institucionalizada. Uma delas, parece-nos ouvir: Não sou, ou não somos, quem criou esse desemprego monumental que nos sitia; não nos diz respeito se desesperançados, desempregados e seus dependentes comem ou não. Tenho a minha própria vida para cuidar, temos as nossas metas e métodos.
O Brasil entregou-se a sonhos criminosos, o ódio é orgástico, a arrogância é endêmica, a indiferença é quase imoral, a falta de educação é indecente. Esse aspecto das nossas propensões é antigo e foi mascarado pela falta de reação e iniciativas de uma população gigantescamente inculta em face da mentira planejada, elitista, persistente e corrosiva; diziam: Pega mal você reclamar, é feio; somos um povo educado, de gente cordata, boa-praça! Era perfeitamente natural o “elogio” de que ‘aquele é um preto de alma branca’, o cúmulo do preconceito, pérola da fraseologia dos senhores de engenho, entre os quais, certamente, não havia negros. A televisão, depois a internet, acabaram com o conformismo submisso que começava na Igreja e acabava nas escolas maltratadas, mal pagas e conservadoras.
As velozes e contínuas mudanças sociais não foram em seu ritmo, às vezes frenético, acompanhadas pelas Instituições que ensejam estabilidade social, elas mesmas começaram a desmanchar-se, incapazes de garantir cidadania e respeito aos menos aquinhoados econômica, financeira e socialmente, que, olhos abertos, passaram a sentir premente necessidade de conquista da própria identidade; permanentemente massacrados e explorados, não lhes passou igualmente pela cabeça importar-se, absolutamente, se a sua busca houvesse de ser empreendida por meio de atos violentos. Ao noticiar tais atos, há quem, olhos vendados, caia na armadilha, preconceituosa e insensível, de classificá-los de “vagabundos”; não reconhecida tal necessidade, a busca e a conquista tornaram-se a cada dia mais difícil, logo, sob a ótica dos buscadores, os atos violentos tinham de aumentar de intensidade. Assim, tudo o que temos é a consequência natural da falta geral de cuidados com as pessoas, com a população, ressalvados os esforços pessoais dos abnegados, que confirmam a regra.
Somos uma personalidade esquizofrênica, tragicamente dividida contra ela mesma, palavras do Dr. Martin Luther King perfeitamente aplicáveis a nós, brasileiros, por ele empregadas para se referir aos que, na América do Norte do seu tempo, preferiram as armas, tornando-se eles próprios violentos e recorrendo a métodos violentos para reverter uma situação de insegurança por eles mesmos criada, tamanha a injustiça social e o menoscabo aos negros e “desendinheirados”. Não é possível a conquista da própria identidade em estado de carência, aí a absurda perversidade, salvo com o retorno do mito da população pacífica, eufemismo para pobre por destino, carente e desassistido, inaposentáveis ou aposentados por capitalização canibalizadora da substância, humana, econômica e financeira, um passaporte para a negação da vida em plena velhice, tempo de sossego por existências de trabalho e sacrifícios ameaçado de atirar na lata de lixo do menosprezo e da insensibilidade.
A Economia, espinha dorsal de qualquer Sociedade, é uma corrente, menor ou mais volumosa segundo os seus tributários, ou afluentes. Condenar uma população à carência na velhice implica, notadamente naquelas em que aumenta a expectativa de vida e, por extensão, a proporção do número de idosos, secar um significativo tributário da corrente principal. Administrar Economias é, intrinsicamente, controlar custos, ampliar o mercado interno, criar mercados potenciais e multiplicar a quantidade de consumidores/contribuintes, proporcionando-lhes trabalho e pondo-lhes no bolso, por paga e contrapartida, além de justiça social, salários e aposentadorias decentes. Sem uma população de consumidores/contribuintes/poupadores, e basicamente investimento público/oficial em áreas chaves, não se constroem ou revitalizam Economias. O que, aquém ou além disso, se disser a respeito será pura falácia.
*O título deste artigo é uma paráfrase de Carl Oglesby no título do capítulo III de Reação e Mudança ---- Portas Abertas, Dominós que caem ----, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1968, tradução de Eglê Malheiros.
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