UMA FASE ESTRATÉGICA, UM RECUO NECESSÁRIO AOS EMBRIÕES DA ORDEM DEMOCRÁTICA
O Brasil vive uma fase estratégica, tudo tem a ver com tudo, nenhum fator pode ser descurado, um chamamento à mais ampla visão do jogo.
Revisitando o tema central, o I Ching, repositório da filosofia das mutações, é pelo menos quatrocen-tos anos mais antigo do que Sun Wu, o general estrategista do período chinês da Primavera e Outono do Zhou Oriental, cuja primeira parte assistiu ao seu estabelecimento, uma homenagem aos Anais da Primavera e do Outono, narração calendarizada que fixa o início da História conhecida e aceita da China, período estendido de 771 a 476 a.E.C., de guerras contínuas em função das quais os senhores dos Feudos existentes absorveram poderes que, com a acumulação de vitórias, propiciaram posições hegemônicas aos maiores vencedores. A segunda parte do Zhou Oriental constituiu-se o período dos Estados Guerreiros, ou Estados Combatentes, durante o qual os sete Estados estabelecidos no período da Primavera e Outono combateram quase permanentemente pelo poder absoluto. A ampliação das guerras nesse período deveu-se à invenção de uma arma extremamente poderosa para a sua época, e de grande mobilidade, a besta, assentada na tecnologia do arco e flecha para disparar projéteis metálicos de efeitos mortais e montada sobre estrados puxados por cavalos.
A dinastia Zhou, a mais longa da História chinesa, seguiu-se à dinastia Shang e foi afastada pela dinastia Qin. O rei Wu, filho do rei Wen, do reino de Zhou, foi o primeiro monarca da dinastia Zhou, e Qin Shi Huang, criador do título de Imperador, foi o primeiro governante absoluto da China unificada em 221 a.E.C. depois de mais de 200 anos de lutas entre os Estados Guerreiros ou Combatentes. Com a morte de Qin Shi Huang desfez-se a unificação da China pela separação dos Estados anteriores, reunificados pela vitória Han sobre todos, estabelecendo-se, então, a dinastia Han, que dominou a China por 400 anos.
Os aforismos de Sun Wu foram alinhados por Sun Tzu. De seu turno, uma síntese cultural da História da China, a compreensão do I Ching é indispensável para a abordagem do pensamento chinês da antiguidade aos nossos dias, passando pelo Tao, por Confúcio e por Lao-tze, um dos tratados mais importantes da cosmogonia chinesa, com todos os milenares reflexos filosóficos na vida chinesa, por centenas de anos, na tri-milenária História do país, a despeito das transformações radicais políticas, sociais e culturais operadas a partir do fim da década de 1940.
Para apreender todas as nuances de A Arte da Guerra e delas se extraírem lições as mais completas e eficientes é necessário dominar o I Ching, seja isso possível, além de estudar profundamente a dinastia Zhou, notadamente o Zhou Oriental, e as dinastias seguintes, suas táticas e suas movimentações, derivadas de Sun Tzu, mas desenvolvidas à luz da grande sabedoria emanada do I Ching, que é a própria sabedoria da China, manifestação impossível de ser absorvida pelas almas toscas ainda não transcendidas pelo privilégio do espírito, para cujo alcançamento são exigidos sensibilidade, apuro de visão e muito exercício intelectual, compensados com uma visão superior do mundo e da vida, sobreposta aos seus aspectos meramente materiais, de poder mal concebido e força obscura. A grande lição a ser extraída não é a de como se vence, mas porque se perde.
O Livro das Mutações, como outras ideias seminais surgidas ao longo da história do homem, sofreu “contribuições”, via interpretação, até mesmo de natureza cabalística, um disparate que, entre outros, criou denso cipoal a ensombrear sua pureza original, necessitando por isso, não raro, de cuidadoso arejamento antes de estudado.
De sobejo, para entender Sun Tzu com propriedade, e sua criatura, Sun Wu, é necessário, após o estudo profundo do período Primavera e Outono e das dinastias que o sucederam, contrapor o conhecimento adquirido ao período antecedente à dinastia Zhou, inaugurada em torno do ano de 1150 a.E.C. pela derrubada da dinastia Shang, época em que o I Ching surgiu, em blocos, ou Kua.
Pode-se considerar, sem exagero, que a cultura chinesa em toda a sua sabedoria formou-se a partir dos Kua. A Arte da Guerra, como Wei qi, é manifestação da sabedoria chinesa; sem conhecer a história ambiente que lhes precede, a compreensão de tudo que lhes sucede fica prejudicada em abrangência e complexidade, uma aparente contradição posto partirem de regras, aforismos e enunciados simples, mas que exigem um amplo cabedal de informações e robusto acervo cultural para serem interpretados na plenitude do seu significado, perfeitamente aplicável à fase estratégica que estamos vivendo.
O pensamento dominante na Sociedade brasileira transformou-se na esteira da mudança de rumo
verificada a partir de 2014, trazendo a agressividade e o desrespeito geral e ostensivo para o dia a dia dos brasileiros, uma “simplificação” comportamental que tornou toscas e primárias as relações inter-pessoais e inter-sociais, deteriorando de modo absoluto todas as formas de comunicação numa explosão incontrolável de violência verbal e procedimental, algo primitivo que passou a permear discursos e caracterizar atitudes. A concepção de poder foi inteiramente comprometida por conceituações extra-constitucionais e extra-legais manifestadas com sem-cerimônia e desembaraço inusitados e desconcertantes, em elisão de responsabilidades e posturas que se compõem no ato intelectual único de recuar até os embriões da ordem democrática e do Estado de Direito para privilegiar a expressão civilizada de nossa sociedade em todos os seus níveis e segmentos. Não há como lidar em escala ampla com a rusticidade intelectual, com a carência técnica sem opções, por isso atrevida, e com a falta de educação.
Em termos de I Ching, estamos diante da imutabilidade indutiva do princípio da desarmonia no qual produzidos os germes das trevas. Esse é o pano de fundo da mutação que deve ocorrer; se não criadas condições propícias ela não ocorrerá. Para isso dispensa-se o tacape, urge o ressurgimento do florete para sairmos da não mutação, entrarmos no processo de mutação cíclica e evoluirmos para a mutação intermitente. Trocando em miúdos, precisamos de um horizonte definido que nos sirva de Norte. Na ausência desse pressuposto será impossível estabelecer uma ordem de ideias, objetivos e métodos para nos libertarmos do alçapão no qual estamos aprisionados.
Sem abrir mão das nossas prerrogativas de cidadãos plenos, condição inafastável, temos de nos inserir numa ordem estável de práticas civilizadas e construir para o longo prazo um sistema que rejeite sequer se esboce o peitar dos Tribunais, especialmente a Corte Maior da República, e desafios à Constituição. Nosso comportamento é caótico; se não nos ordenarmos continuaremos isolados em nossas práticas obtusas, um país intranquilo sem segurança de qualquer natureza. Cuidar da Constituição, da observância das leis e dos bons costumes, essa tem de ser a posição indeclinável da maioria responsável da Sociedade brasileira, que não necessita de tutores ou que se lhe tentem impor oportunísticamente, sob ótica distorcida, um Estado moral e eticamente frágil posto calcado na violência institucional que apenas interessa aos poucos que o pretendem partilhar entre si.
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