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CENTO E TRINTA E CINCO ANOS E UM DIA








Você era bonita. E forte. Lembro de poucas pessoas, nenhuma, a mudar a vida com tanta certeza como a certeza do seu querer, com tanto trabalho. Elegante, criou beleza. Comovia-se com uma palavra gentil, um gesto, o mais simples, que lhe negaram nos tempos finais. Estive lá todo o tempo, mas, esgotado, não lhe pude dar-me no momento fatal, quando merecíamos estar juntos. Certa vez, perplexo, sentindo sua vida escoando-se lenta, estiolando-se, deitei-me a seu lado, a cabeça em seu ombro, você moveu-se, o corpo frágil, quase nada; os braços descarnados, sem força, abraçaram-me um abraço de consolo, de conforto, de proteção, apesar de tudo, a entrega total, a derradeira renúncia de si mesma.


Neste seu dia, manhã bem cedo, ainda na cama, o quarto em penumbra, muitas lembranças, nossas longas conversas, a paz e a força que você me transmitia, as lições de vida, os exemplos. Só agora a ficha caiu realmente. Pela primeira vez nesses 14 anos de sua partida eu chorei, chorei baixinho e sofrido a dor imensa da sua ausência.






Que saudade, Mãe!








(Maio de 2014 / Maio de 2023)

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TREZE DE MAIOTREZE DE MAIO 2

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13 DE MAIO


— Pega ladrão!...


O grito estridente parou a quase multidão que circulava naquele fim de manhã de 19 de Setembro de 1890 na rua do Lavradio, centro do Rio de Janeiro.


O Lavradio era um charco, terras pantanosas estendidas de próximo dos Arcos da Lapa ao Largo do Rocio. Drenado pelo Marquês do Lavradio em 1771, tornou-se zona nobre da cidade onde moraram, entre outras figuras proeminentes, cortesãos, como Antônio Saldanha da Gama e José Joaquim de Sequeira, nobres, como o Conde de Caxias e o regente imperial Marquês de Olinda, o Encarregado dos Negócios da França, Pontois, além de artistas e escritores, como Jesuína Monteiro, João Caetano e Valentim Magalhães. Lá ficavam o Frontão Fluminense, ou Coliseu Lavradio, clube esportivo para o jogo da Pelota, o Velódromo, para a prática do ciclismo. E teatros, como o Apollo, recém-inaugurado, o do Porphyrio, o Polytheama Fluminense e o do Circo. Em 1889 a imigração bateu todos os recordes. O Rio de Janeiro, cidade de maioria negra, seu destino principal, tornou-se um inferno de delitos e miséria, tantos os desocupados pelas ruas, tanta a falta de oportunidades de trabalho; imigrantes juntaram-se aos escravos libertos sem qualquer planejamento. Na região central multiplicaram-se as 'cabeças de porco', cortiços, residências coletivas sem a menor condição de higiene e habitabilidade; nas zonas mais afastadas proliferaram as favelas. A imensa maioria da população definiu-se num traço comum, a miséria sem futuro e sem voz dos desassistidos.

Ao fim da escravidão seguiu-se a chamada era de modernização, um sofisma para a demarcação de áreas, a destruição completa do que não se ajustasse ao usufruto da cidade pelas elites, especialmente portugueses, seus descendentes, estrangeiros em geral, agregados nativos e funcionários públicos graduados. Os demais foram estigmatizados pelo nascente elitismo republicano, dependente de tudo quanto externo. O trabalho responsável, árduo e patriótico, necessário à construção de um país, nunca, desde os idos dos primeiros invasores, havia sido particularmente apreciado; sem escravos para explorar, as elites ficaram, para o trabalho pesado e para o serviço doméstico, com os analfabetos, semianalfabetos, todos os despreparados para explorar e mal remunerar ou compensar apenas com moradia e alimentação. O que disso excedesse vinha do exterior.

O fim da escravidão, do modo e pelas razões em que verificado ― a República se aproximava, célere, a Coroa sofria intensa pressão diplomática para extingui-la; os africanos foram simplesmente atirados no lixo depois de explorados por séculos, uma imoralidade sem tamanho ― não libertou os escravos, condenou-os e aos seus descendentes à miséria, à discriminação e ao preconceito, de um lado por serem indefesos, a covardia maior, de outro por serem pobres, avançando a discriminação e o preconceito não apenas para os negros, pobres, mas para a negação do pobre em geral, de pele negra ou olhos azuis, a mesquinhez estratificada no tipo de trabalho; o europeu aqui chegado, especificamente o nobre e o português funcionário da Coroa, particularmente as pessoas aqui nascidas em convívio com eles, viam no trabalho uma atividade negativa e no trabalho manual ou físico uma desonra. De sobejo, não bastassem a discriminação e o preconceito pela cor da pele e pela pobreza, a essa caixa de maldades foi acrescentado o preconceito com relação à forma de trabalho. Com o passar do tempo, o imigrante aqui chegado de pés descalços viu sua redenção no "Dr." para os descendentes, compensando-se a si próprio, o que jamais alcançaria em seu país de origem. Isso alimentou a fixação pelo bacharelismo e o desprezo pelo não bacharel.

Nesse quadro, a última coisa em que as elites queriam pensar era massificar a educação e o conhecimento, reservando-os para si; educação generalizada, para elas, implicava ameaça ao seu status e poder. Mesmo teoricamente livres, analfabetos, semianalfabetos e gente inculta permanece sem voz e fácil de controlar com algum paternalismo, muita demagogia e posições aparentemente duras relativamente aos adversários, como se as elites não fossem, no fim das contas, todas e todos os seus membros, uma coisa só. Isso considerado, cada migalha de cidadania era, é, um favor.


O negro foi tornado mau em função da cor de sua pele, a Igreja sustentava que sua alma era diferente da alma dos brancos europeus e dos brancos nativos ricos, não de forma tão explícita, por óbvio, e com isso deu suporte à escravidão, primeiro, depois à situação penosa dos ex-escravos. Criou-se, então, um epíteto muito apreciado, o cúmulo do preconceito, para o negro submisso, servil, pretendente às migalhas sociais do europeu, com quem se pretendeu branquear a Sociedade brasileira: O preto de alma branca. Os tios Thomas eram e são detestáveis.

Havia um país a construir, mas os construtores ou agentes para a tarefa muito poucos. O território, imenso e muito rico, não fora colonizado, fora ocupado e saqueado. A estruturação judicial só então começava a definir-se; quando outros países já produziam excedentes industriais, a Inglaterra em plena atividade para conseguir-lhes mercados e os Estados Unidos, em 1890, começando a fazê-lo, o Brasil, com 8.500 quilômetros quadrados de área e uma conveniente diversidade climática, beirando os 400 anos de domínio português importava alimentos, não tinha sequer um arremedo de atividade industrial, não tinha estrutura educacional e vivia a braços com um problema herdado dos seus anos de colônia: O projeto pessoal mais ambicioso em geral não era construir coisa alguma, mas viver do dinheiro público.


Sem trabalho, sem futuro, sem esperança, sem assistência, os homens mais velhos, em regra ex-escravos já sem muito vigor físico, carregavam nas costas, em cestos, o dejeto orgânico dos brancos para atirá-lo em valões ou no mar. Quando nem isso podiam mais fazer, simplesmente ficavam esperando a morte por inanição ou males provocados pela falta de alimentação. Às vezes, pelo desespero da fome, roubavam.



O homem foi perseguido e alcançado com facilidade. Era negro, de idade indefinida, mas velho, além de desnutrido e esquálido. Não conseguiu correr, ir muito longe. Quando agarrado, sua expressão era de susto e medo, nas mãos pedaços, ainda, do que roubara e começara a comer com sofreguidão, da boca pendendo resíduos de linguiça. Crus. Foi agredido, espancado. Não resistiu. Caiu. No chão, foi chutado, mesmo quando o corpo jazia inerte, ensanguentado, quebrado, nos olhos e rostos dos agressores um ódio incontido, selvagem. Lá ficou por horas até ser levado por um grupo de negros. Enquanto se afastavam, um dos últimos a deixar a cena brutal foi interpelado por um passante indiferente:

— O que aconteceu? — Nada, só um preto que recebeu o que merecia. — Ah, bom!... Eles não queriam ser livres? Agora aguentem.


O local voltou ao seu movimento normal. Em frente ao número 84 da rua do Lavradio. Formara-se o enfoque oficial republicano para negros e pobres.



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13 DE MAIO 2

Várias ordens religiosas possuíam escravos nos conventos e colégios; religiosos também estiveram envolvidos diretamente na sua sorte. Quando resistiam à evangelização, os índios eram abandonados pelos Jesuítas, acabando escravizados pelos portugueses. A evangelização era feita à custa de castigo e medo (ver Eduardo Hoornaert, História da Igreja no Brasil, Vozes, 1983, p. 260). Dois dos mais celebrados religiosos no Brasil compactuaram com a escravidão. Nóbrega frequentemente requisitava escravos para os serviços; Antônio Vieira, o padre dos extensos poemas na areia, defendia que a vinda dos africanos para a América permitiria sua cristianização, logo, sua libertação do destino inexorável a que o paganismo os conduzia, o inferno, caso permanecessem na África (ver Luiz Felipe de Alencastro, O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico, Companhia das Letras, São Paulo, 2000, pp. 182/183).

Vieira não tinha noção do que falava, ou tinha, mas seu discurso era informado por outras razões que não as apresentadas. Inferno eram os porões imundos e malventilados onde seres humanos eram transportados com alimentação precária e nenhum cuidado, tratados como animais e vítimas de toda sorte de males, entre eles o escorbuto, que matava boa parte deles. A indiferença era tal que, quando da preparação dos embarques, era calculada uma percentagem a maior das quantidades a chegar ao porto de destino, porque, sabia-se, haveria perda de “carga” por morte. Os corpos eram atirados ao mar, verificando-se casos em que, ainda vivos, mas considerados irrecuperáveis, eram assim mesmo atirados às águas.

Era um sonho dantesco o tombadilho, Que das luzernas avermelha o brilho Em sangue a se banhar. Tinir de ferros, estalar de açoite, Uma legião de homens negros como a noite, Horrendos, a dançar. (Castro Alves, Navio Negreiro, trecho I/IV)

Mesmo a poesia era descaracterizada pelo preconceito.

Do papado ao rei, deste aos padroados, as autoridades eclesiásticas eram nomeadas pela Coroa, tornando-se, sob o pálio da Igreja, seus empregados, corporificadores e condutores do sistema trono/altar, cruz/espada. A Igreja punha-se a serviço do rei, que tinha interesse na manutenção da escravidão, em primeiro lugar porque cobrava impostos por cabeça nos embarques na África, para não haver evasão, e para não perdê-los na hipótese de mortes no transporte, que sabia ocorrerem e estiveram sempre nos cálculos dos envolvidos; o pagamento era comprovado pela marca da Coroa por ferro em brasa aposta no negro embarcado por suprimento de Dom João II, disposição alterada por Dom João IV, que substituiu a marca a fogo por uma argola de ferro em torno do pescoço. Em segundo lugar porque a mão de obra escrava sustentava por baixo custo os negócios locais, extrativos e transformadores, que geravam impostos, muito pouco deles retido na Colônia, a parte maior remetida para a Metrópole.

Na visão da Igreja, ou por razões de Estado, por ela defendidas e conduzidas, o trabalho escravo concorria para a libertação do negro pagão do pecado do paganismo, com isso assegurando-lhe a graça divina e a salvação na santa vida pós-morte. Neste passo, não bastava beijar a mão que segurava o chicote; o escravo devia, também, beijar o chicote que o flagelava. O desprezo pelo africano não era questão pessoal, mas uma regra institucional consolidada e absorvida pela Sociedade, eminentemente portuguesa em cidadãos e costumes, sem nenhum respeito pelo trabalho, pela dignidade, pela educação. O imigrante, iletrado em sua mais extensa maioria, não lhe conhecia o valor, a uma porque tinha medo dela, a duas porque era um risco para os seus privilégios e para a sua ascendência sobre os nativos, que continuaram mesmo após a independência e a República. Pelas contas externas de 1925, o Brasil pagava por ano, para manutenção da cadeira de Camões no King ́s College, de Londres, 300 (trezentas) Libras, correspondentes a 2.553$334 (dois milhões, quinhentos e cinquenta e três mil, trezentos e trinta e quatro) réis-ouro.


Era, então, 103 anos após a independência formal, um país mergulhado no analfabetismo que gastava dinheiro dessa maneira. E importava espanadores (DOSP de 24 de novembro de 1925).

Quando você tiver a curiosidade de saber por que o Brasil é como é hoje, basta olhar para trás, recuar até o início de sua ocupação. O país paga até hoje alto preço por ela.

Sob o ministro Levy, para o ajuste, cortes orçamentários acabam de ser feitos no PAC, na Educação e na Saúde. Todo o mais foi mantido. PAC é gente, Educação e Saúde são o futuro. Os cortes, mais uma vez, o adiaram. O FMI aplaudiu.

Você viu, neste 2015, em 2014, celebrações do 21 de Abril e do 13 de Maio? Sepultar o passado é forma de sepultar a memória do país. Sem memória não se vai a lugar nenhum que preste. Sem Educação e sem Saúde idem, idem.


Não fora pela movimentação negra, também o 13 de Maio deste 2023 teria passado em branco; a dívida é muito grande, as elites não se querem lembrar dela, ou cobrados. Discriminar, machucar, maltratar, desprezar, para elas, é a ordem natural das coisas.


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©Onair Nunes da Silva

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