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CUMPRINDO UMA PROMESSA

um país onde mais da metade é negra e suas incongruências

O melhor de ultimamente eu assisti ontem à noite. Antes de me deitar dei uma corrida

ligeira pelos pouquíssimos canais que deixei ativos na minha TV. E encontrei uma

entrevista com Neguinho da Beija-flor, entrevistado e entrevistador tranquilos,

seguros, um alto grau de empatia, coisa de gente acordada para a vida que não está

querendo colonizar ninguém. E, o melhor de tudo, Neguinho trazia estampado na t-shirt o seguinte:

“Eu não pedi para ser negro, mas dei sorte!”


Pena que não deu para assistir a entrevista inteira. Muito tarde para quem tem o que fazer no dia seguinte. Bem que alguns programas e noticiários podiam ser exibidos antes da meia-noite. Quem tem uma vida produtiva e útil precisa levantar cedo, não dá para ficar todo dia brincando de morcego. ____________________________________________


— Pega ladrão!...

O grito estridente parou a quase multidão que circulava naquele fim de manhã de 19 de Setembro de 1890 pela rua do Lavradio, centro do Rio de Janeiro.



O Lavradio era um charco, terras pantanosas estendidas de próximo aos Arcos da Lapa até o Largo do Rocio. Drenado pelo Marquês do Lavradio em 1771, tornou-se zona nobre da cidade onde moraram, entre outras figuras proeminentes, cortesãos como Antônio Saldanha da Gama e José Joaquim de Sequeira, nobres como o Conde de Caxias e o regente imperial Marquês de Olinda, o Encarregado dos Negócios da França, Pontois, além de artistas e escritores, como Jesuína Monteiro, João Caetano e Valentim Magalhães. Lá ficavam o Frontão Fluminense, ou Coliseu Lavradio, clube esportivo para o jogo da Pelota, o Velódromo, para a prática do ciclismo. E teatros, como o Apollo, recém-inaugurado, o do Porphyrio, o Polytheama Fluminense e o do Circo.

Em 1889 a imigração bateu todos os recordes. O Rio de Janeiro, cidade de maioria negra, seu destino principal, tornou-se um inferno de delitos e miséria, tantos os desocupados pelas ruas, tanta a falta de oportunidades de trabalho; imigrantes juntaram-se aos escravos libertos sem qualquer planejamento. Na região central multiplicaram-se as ‘cabeças de porco’, cortiços, residências coletivas sem a menor condição de higiene e habitabilidade; nas zonas mais afastadas proliferaram as favelas. A imensa maioria da população definiu-se num traço comum, a miséria sem futuro e sem voz dos desassistidos.

Ao fim da escravidão seguiu-se a chamada era de modernização, um sofisma para a demarcação de áreas, a destruição completa do que não se ajustasse ao usufruto da cidade pelas elites, especialmente portugueses, seus descendentes, estrangeiros em geral, agregados nativos e funcionários públicos graduados. Os demais foram estigmatizados pelo nascente elitismo republicano, dependente de tudo quanto externo. O trabalho responsável, árduo e patriótico, necessário à construção de um país, nunca, desde os idos dos primeiros invasores, foi particularmente apreciado; sem escravos para explorar, as elites ficaram, para o trabalho pesado e para o serviço doméstico, com os analfabetos, semianalfabetos e todos os despreparados para tirar proveito e mal remunerar ou compensar apenas com moradia e alimentação. O que disso excedesse vinha do exterior. Por que e para que educar, ora pois? Essa posição fez escola, deixou marcas profundas.

O fim da escravidão, do modo e pelas razões em que verificado, não libertou os escravos, condenou-os e aos seus descendentes à miséria, à discriminação e ao preconceito, de um lado por serem indefesos — a covardia maior —, de outro por serem pobres, avançando a discriminação e o preconceito não apenas para os negros, pobres, mas para a negação do pobre em geral, de pele negra ou branca e de olhos azuis, a mesquinhez estratificada no tipo de trabalho; o europeu aqui chegado, especificamente o nobre e o português funcionário da Coroa, particularmente as pessoas aqui nascidas em convívio com eles, viam no trabalho uma atividade menor e no trabalho manual ou físico uma desonra. De sobejo, não bastassem a discriminação e o preconceito pela cor da pele e pela pobreza, a esse baú de maldades foi acrescentado o preconceito com relação à forma de trabalho. Com o passar do tempo, o imigrante aqui chegado de pés descalços viu sua redenção no ‘Dr.’ para os descendentes, compensando-se a si próprio, o que jamais alcançaria em seu país de origem. Isso alimentou a fixação pelo bacharelismo e o desprezo pelo não bacharel.

Nesse quadro, a última coisa em que as elites queriam pensar era massificar a educação e o conhecimento, reservando-os para si; educação universalizada, para elas, implicava ameaça ao seu status e poder. Mesmo teoricamente livres, analfabetos, semianalfabetos e gente inculta permanece sem voz e fácil de controlar com algum paternalismo, muita demagogia e posições aparentemente duras relativamente aos adversários, como se as elites não fossem, no fim das contas, todas, e todos os seus membros, uma coisa só. Isso considerado, cada migalha de cidadania era, é, um favor. O negro foi tornado mau em função da cor da pele, a Igreja sustentava que sua alma era diferente da alma dos brancos europeus e dos brancos nativos ricos, não de forma tão explícita, por óbvio, e com isso deu suporte à escravidão, primeiro, depois à situação penosa dos ex-escravos. Criou-se, então, um epíteto muito apreciado, o cúmulo do preconceito, para o negro submisso, servil, pretendente às migalhas sociais do europeu, com quem se pretendeu branquear a Sociedade brasileira: O preto de alma branca. Os tios Thomas eram e são detestáveis.

Havia um país a construir, mas os construtores ou agentes para a tarefa muito poucos. O território, imenso e muito rico, não fora colonizado, fora ocupado e saqueado. A estruturação judicial só então começava a definir-se; quando outros países já produziam excedentes industriais, a Inglaterra em plena atividade para conseguir-lhes mercados e os Estados Unidos, em 1890, começando a fazê-lo, o Brasil, com 8.500 quilômetros quadrados de área e uma conveniente diversidade climática, beirando os 400 anos de domínio português, importava alimentos, não tinha sequer um arremedo de atividade industrial, não tinha estrutura educacional e vivia a braços com um problema herdado dos seus quase 350 anos de colônia: O projeto pessoal mais ambicioso em geral não era construir coisa alguma, mas viver do dinheiro público. Sem trabalho, sem futuro, sem esperança, sem assistência, os homens mais velhos, em regra ex-escravos já sem muito vigor físico, carregavam nas costas, em cestos, o dejeto orgânico dos brancos para atirá-lo em valões ou no mar. Quando nem isso podiam mais fazer, simplesmente ficavam esperando a morte por inanição ou males provocados pela falta de alimentação. Às vezes, pelo desespero da fome, roubavam.



O homem foi perseguido e alcançado com facilidade. Era negro, de idade indefinida, mas velho, além de desnutrido e esquálido. Não conseguiu correr, ir muito longe. Logo agarrado, sua expressão era de susto e medo, nas mãos pedaços, ainda, do que roubara e começara a comer com sofreguidão, da boca pendendo resíduos de linguiça. Crus. Foi agredido, espancado. Não resistiu. Caiu. No chão, foi chutado, mesmo quando o corpo jazia inerte, ensanguentado, quebrado, nos olhos e rostos dos agressores um ódio incontido, selvagem. Lá ficou por horas até ser levado por um grupo de negros. Enquanto se afastavam, um dos últimos a deixar a cena brutal foi interpelado por um passante indiferente:

— O que aconteceu?

— Nada, só um preto que recebeu o que merecia. — Ah, bom!... Eles não queriam ser livres? Agora aguentem.


O local voltou ao seu movimento normal. Formara-se o enfoque republicano para negros e pobres.

Isso explica de forma cabal porque o Brasil é como é. O ‘detalhe’ é que o profundo abismo entre as elites e a população em geral foi preenchido na forma de violência e brutalidade, que explodiram, ao invés da Educação, proliferaram e agora são universalizadas, como deveria ser a Educação. E, preponderantemente significativo, as elites e as classes abastadas continuam a negar prioridade e universalização à Educação, só que agora, havendo-lhes fugido o controle sobre a violência e a brutalidade, reclamam.


É melhor começarem a fazer alguma coisa, rápido, pararem de pedir mais força e repressão.

(REPUBLICAÇÃO)



 


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